domingo, 13 de novembro de 2011

Um tour gótico pela Itália

Catacumbas, ruínas e locais históricos permitem aos turistas conhecer o passado macabro de três cidades italianas

Quem visita a Itália tende a buscar seu lado ensolarado e dionisíaco - vinho, massas, ópera,arte renascentista. Mas, como uma brisa fresca num dia quente, a face gótica da Itália oferece sugestões de escuridão que tornam a viagem ainda mais deliciosa.
Conscientemente ou não, o viajante que beberica um prosecco ao pôr-do-sol em Roma ou Nápoles aprecia ainda mais os prazeres da vida graças a este contraste entre a beleza do presente e a proximidade de catacumbas, ruínas e antigos locais de sofrimento.
Muitos escritores góticos, inclusive, inspiraram-se nesta dualidade que marca o país italiano. Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Horace Walpole, Ann Radcliffe e outros mestres do romantismo e do horror ambientaram algumas de suas obras mais conhecidas na Itália. Hoje, esses mesmos livros podem servir de guias não-convencionais para turistas cansados do sol e que queiram explorar o passado macabro do país.

Passado trágico marca o lado escuro da charmosa Otranto

Bela cidade italiana guarda catedral com crânios humanos e castelo mal-assombrado

A cidadezinha branca de ruas calçadas de pedra, na costa adriática do sul da Itália, serviu de cenário para aquele que é considerado o primeiro romance gótico, "O Castelo de Otranto", de Walpole.
Segundo os livros, Otranto é assombrado por um passado trágico: um massacre do século 15 - resultado de um longo e sangrento conflito entre o Islã e a Cristandade - que os otrantanos comemoram anualmente até hoje.
"A história local está recheada de sangue e de escuridão", disse-me um guia e historiador local, Francesco Calignano, enquanto me levava à Catedral de Otranto.
A catedral é conhecida por seu piso trabalhado em um complexo mosaico, retratando cenas de quase todos os mitos e lendas humanos conhecidos no mundo em torno do ano 1100, incluindo a árvore da vida da Cabala, o confucionismo e o Gato de Botas.
Após admirar o belíssimo piso, fui levada a um verdadeiro espetáculo gótico: revestindo estantes sobre uma parede estavam 800 crânios humanos, vítimas dos turcos invasores. Calignano relatou com uma careta como os pedaços de carne preservada das vítimas ainda estão guardados numa gaveta trancada. Uma vez ao ano, em agosto, elas são retiradas dali para serem levadas em procissão pelas ruas da cidade.
"O Castelo de Otranto" foi um fenômeno editorial em 1764. O curto relato de seu autor descreve a punição sobrenatural de um príncipe feudal italiano em um castelo assombrado com o que consideramos hoje clichês macabros - portas secretas, túneis fúnebres, salas de armas assombradas, retratos de ancestrais saltando de suas molduras. Naquela época, no entanto, tais imagens eram tão frescas e chocantes que o livrinho de Walpole tornou-se um "best seller" instantâneo na Inglaterra.
Paguei alguns euros e andei sozinha pelos brancos corredores do castelo, buscando sinais dos fantasmas de Walpole, investigando quartos pequenos, vazios e gradeados que podem ter sido calabouços. Do lado de fora, há uma fotogênica e bem preservada fortaleza. Mas, suas torres e muralhas e seu amplo fosso sem água atestam o terror defensivo dos habitantes de centenas de anos atrás.

Descubra cenário de calabouços, esqueletos, ruínas em Nápoles

Um passeio pela colorida e alegre cidade italiana revela igrejas e histórias sombrias

Em direção a Nápoles, minha ideia era mergulhar nos trabalhos de uma mestra gótica menos conhecida, Ann Radcliffe. Ela era uma inglesa reclusa que, como Walpole, foi celebrada em seu tempo por suas novelas.
O romance mais conhecido de Radcliffe, "The Italian", tem lugar na Nápoles do século 18. Quase todas as suas páginas contêm uma torre de castelo, uma ruína sombria e arrepiante, e perseguidores de batina pertencentes a ordens religiosas. A trama é bastante simples: um jovem nobre de Nápoles se apaixona por uma moça que sua mãe desaprova veementemente. A mãe contrata um monge mau para livrar-se dela, mas o monge descobre que a moça é, na verdade, sua filha, fruto de um caso proibido.
O livro começa com um inglês sondando a igreja napolitana de Santa Maria del Piano, que Radcliffe diz ter abrigado "o convento muito antigo da ordem dos Penitentes Negros". A igreja ainda está lá, mas não se encontra em nenhum mapa turístico. Ela ainda existe, mas se localiza onde é hoje um subúrbio infestado pelo crime organizado chamado Secondigliano. Tive, relutantemente, de cortá-la da lista de lugares a visitar.
Há outros cenários napolitanos de Radcliffe valem uma visita, nem que seja porque buscá-los permite perambular pelas ruas da cidade, notando os muitos outros encantos góticos de Nápoles que Radcliffe perdeu de vista.
Os personagens amantes do livro, Vivaldi e Ellena, se vêem pela primeira vez na igreja de San Lorenzo Maggiore, que ainda se ergue no centro histórico de Nápoles - uma construção amarela e cinzento que tem por baixo de si um sítio arqueológico. Um local ainda mais assustador é o Museu das Almas do Purgatório, criado pela igreja católica no início do século passado, que recebia doações de ossos de mortos para resgatar as almas associadas a eles do esquecimento eterno.
Imperdível mesmo na viagem é a igreja de Santa Maria delle Anime dell Purgatorio, onde há um esqueleto coroado chamado "Lucia" e uma obra-prima escultural de um esqueleto alado.
Mas a maior parte da ação em "O Italiano" ocorre em um castelo arruinado nas montanhas, onde o casal fica trancado em salas escuras, são sequestrados e então enviados para o sádico tribunal da Inquisição. O Castelo San’Elmo ainda encontra-se no mesmo lugar, uma estrutura medieval, cheio de passagens. A vista de lá é espetacular.
Alguns metros abaixo está o mosteiro de San Martino, um suntuoso local com jardins secretos, perfumado por laranjeiras com galhos de cipreste balançando. Tanto o castelo, quanto o mosteiro são acessíveis por bondinho que desce até o centro histórico.
Não perca o pequeno Museo Capella Sansevero, com dois esqueletos anônimos, cujo sistema circulatório, segundo as lendas, teria sido misteriosamente mumificado por um louco alquimista nobre.

Ambientes góticos atraem turistas à capital romana

Na Cripta dos Capuchinhos, ossos de quatro mil monges decoram as paredes do local

Roma é outra cidade abundante de ambientes góticos, e para a minha viagem levei "O Fauno de Mármore", de Hawthorne. O autor chegou ao fim de sua carreira como mestre do horror psicológico e sobrenatural da Nova Inglaterra puritana, e esse relato novelístico de viagem não é dos seus melhores.
Em dois volumes, o conto é a história de três artistas americanos que trabalham em Roma e que encontram e ficam amigos de um sátiro (uma figura mitológica metade homem, metade bode), que parece ter sido o modelo de carne e osso de uma estátua de mármore do Capitólio, uma das famosas sete colinas de Roma.
Os visitantes dos Museus Capitolinos, um conjunto de palácios romanos no topo do Capitólio, gloriosamente recheados de tesouros, encontram hoje muitas estátuas do fauno, associado a Dionísio, que representava o animal no homem, simultaneamente inocente, sexual e anárquico. O parente mais ameaçador do fauno, o sátiro, é abertamente luciferiano, com chifres e cascos. Um grande sátiro desse tipo observa atentamente de uma estante no pátio egípcio do museu.
Cripta dos Capuchinhos
Um passeio de ônibus ou uma caminhada descompromissada através do centro histórico de Roma leva o viajante a outra locação principal de "O Fauno de Mármore" - a assustadoramente bela Cripta dos Capuchinhos, no subsolo da Igreja Santa Maria della Concezione dei Cappuccini, onde os personagens de Hawthorne confrontam um monge.
Decorada em estilo barroco com os ossos brancos de quatro mil monges, a Cripta dos Capuchinho, próxima à luxuosa Via Veneto, é o hoje uma parada popular em qualquer tour em Roma. Mesmo macabra, ela é um local sagrado. Não são permitidos nem câmeras, nem chapéus, nem roupas abertas.
A cripta é pequena e claustrofóbica, e o cheiro nauseantemente doce dos ossos preenche uma passagem debilmente iluminada que serpenteia através de oito portais exibidores, com arabescos de milhares de ossos arrumados por tipo - dedos, patelas, fêmures, falanges, crânios – em flores rendadas, guirlandas, relógios ou urnas, atados às paredes e ao teto.
Na última sala, a mensagem sobre o chão próxima às rosas depositadas por fiéis, em cinco línguas, lembra os alegres turistas de sorver profundamente da taça das alegrias da Itália, pois a sombra eterna avança: "O que você é hoje é o que éramos nós. O que somos agora, é o que você será".
Subindo as escadas de volta às ruas de Roma, os prazeres da Itália são imediatos e acessíveis, mas também complexos. Sem a escuridão, o país poderia ser suave como a Suécia. Ver a Itália através da lente gótica aprofunda nossa apreciação da dor, do sofrimento e da morte que são, com o amor, o desembaraço e a luz, também o destino humano.



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